terça-feira, 30 de outubro de 2012

Língua de Espada


  Há pessoas das quais não gostamos de estar perto. Pessoas que são tão fúteis que seus problemas, para elas, são maiores que os de outras pessoas, com amigos que amam e que não gostam quando não veem o apoio que precisam ter nelas. Há pessoas que são tão prepotentes que conseguem achar que são a luz do mundo, mas em um piscar de olhos tornam-se uma escuridão absurda e amedrontadora. Pessoas com lâminas bem afiadas no lugar de língua, que machucam, fazem doer.
  Há pessoas que param de pensar que se continuarem, serão levadas a um confronto sem sentido, e levarão feridas. Pessoas que cortam a própria boca com a língua. Filhos de Ares, que preferem a discórdia do outro ao próprio arrependimento. Pessoas que doem só de estarem por perto, porque já disseram o que não deviam dizer. Pessoas imperdoáveis, monstros imperdoáveis, metamorfos que transformam-se no ser mais brutal e violento, quando querem. E elas querem.
  Eu acabei de ser uma dessas pessoas. Desembainhei minha espada pro objetivo errado, mas cortei. Fiz uma ferida enorme em mim e em quem amo. E não fiz nada pra parar de sangrar.
  Como se amam monstros? Monstros como esses podem chegar à própria redenção?
  Me encontro em uma sala vazia, deixado por alguém que acabei de machucar, que quis ir embora porque não queria ficar mais do meu lado, não queria abraçar ou beijar o portador da lâmina fria que causou tanta dor. Eu tô aqui, sozinho, com sangue nas mãos, pensando no que fiz e me perguntando se eu mereço perdão de alguém.Como podemos ferir alguém que talvez não possa perdoar a enorme ferida que causamos? Como podemos ferir alguém que amamos tanto, e queremos tanto do nosso lado? E se fizermos alguém partir de nossa vida por isso?
  E como eu posso ser egoísta a ponto de me desesperar por não poder ter mais a pessoa por perto, quando eu deveria me preocupar com a carne que eu abri?
  Creio ter rasgado um tecido difícil de se recuperar. Eu não mereço redenção, eu sinto que esse monstro que eu fui não sofre nada perto do que devia, e tá reclamando mais dor, pelo amor da bondade.
  E eu não devia escrever. Isso me alivia. Eu devia guardar todo o arrependimento dentro de mim, sem deixar transbordar uma só gota. Seria algo que eu faria com quem me rasgasse dessa forma: prenderia em um cômodo escuro, sem papel ou caneta, pensando no que fez. Essa sala é muito clara e confortável pro tipo de demônio que eu acabei de ser.
  Mas talvez eu ame. Meu erro é amar a mim mesmo a ponto de me destruir dessa maneira. Meu amor próprio tá errado.
  Mas talvez eu ame...

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A Fita de Cabelo

 
 É madrugada de uma segunda-feira. A semana mal começou e meu inferno começou com ela.
 Eu queria ter aberto aquela porta e saído da sua vida. Saído das suas lembranças e suas expectativas frustradas. A grande verdade é que eu preciso deixar você sair de mim antes.
  Saudades as minhas do tempo em que eu tinha necessidade de colocar uma máscara de alegria e ia para a aula continuar a minha vida e rir com meus amigos. Esquecer de tudo o que me fazia mal. Mas cada fingimento, cada fraude, cada parte da minha armadura que me protegia foi caindo, uma a uma. Foi antes de você conhecer esse bobo sentimental que eu costumo ser hoje em dia.
  Deuses, como eu queria ter aberto aquela porta e você tivesse sumido. Eu teria ido embora, chorado e acordaria no outro dia talvez rindo da minha cara de choro. Mas não foi assim. Foi pior.
  Ontem eu fui arrumar minha mochila para a aula e encontrei a fita de cabelo preta que você deixou em casa. Eu juro que esqueci de devolver, é uma lembrança forte demais para estar comigo depois do que aconteceu.
   Depois da aula eu tirei a fita da mochila e ela tinha o seu cheiro. Eu ri me lembrando do cheiro do seu cabelo que ficava no meu rosto sempre que a gente dormia abraçado, e de como eu dormia e acordava com um beijo no seu pescoço. De como você era a primeira coisa que eu via no meu dia, e de como eu te beijava sempre que acordava. Foram tão poucas vezes em tão pouco tempo, mas me marcou de tal maneira...
   Hoje eu deitei minha cabeça no travesseiro e me perguntei se eu devia te avisar que sua fita estava comigo. Eu pensei em continuar com ela até que o cheiro acabasse, ou até que eu enjoasse dele e não quisesse ficar com ela. É tão improvável que eu a esqueça, que eu a deixe de lado, que eu não a pegue na mão por ao menos um momento do meu dia para passar os dedos e sentir seu cheiro, lembrar de como seus beijos me acalmavam e me levavam a um êxtase irreal, que por alguns segundos eu não lembrava de mais nada, e pelo resto do meu dia os meus problemas pareciam ter desaparecido. Você foi meu alívio, um alívio que eu não consegui em outras pessoas. Você foi a alegria do fim de um período difícil que eu tinha durante uma parte do meu dia. Você foi um filho de Dionísio.
   E eu devia saber e não devia desejar que eu pudesse prender Dionísio a mim, que talvez não seja culpa sua que hoje as suas declarações de amor a mim não possam mais ser válidas. Você foi uma onda de atordoamento que passou porque talvez estivesse mais que na hora de passar. E apesar de tudo o que você me disse, eu sei que não volta. E isso me dá raiva, me deixa frustrado, como um viciado em abstinência, como alguém que tivesse que voltar ao controle da própria vida, sozinho, de novo. Como alguém que caiu porque seu chão sumiu de repente.
   E minhas lembranças felizes são tão intensas, mas tão poucas, que no fim das contas só tenho raiva de você porque agora vou ter que parar de usar minhas lembranças boas contigo para me fazer bem, porque elas e fazem mal. Elas me dão saudade.
  "Preciso devolver sua fita de cabelo, tava na mochila, eu esqueci no dia. Ela ainda tá com seu cheiro."
  E tenho dito,
    Lipe.